Sem olhar para trás fica o cruzamento de ontem. As memórias não são para ser vividas mas para estarem em nós, somos hoje aquilo que amanhã queremos. Sentado olhas para cima, vês que ainda é dia e sais com a vontade que tudo se volte a cruzar.

Com o corpo dormente, deito-me sobre a cama, dói-me o cansaço.
Sentimos o mesmo em partes diferentes, possivelmente amanhã a cidade volta a estar cheia de gente e tudo nos parece em lento compasso. As inércias e os momentos nem sempre se alinham, mas era tão bom quando parávamos o tempo, acreditávamos que o mundo era nosso, mesmo que em universos diferentes. A ansiedade de chegar anula sempre a alegria do caminho, e a vontade de mudar faz não perceber que se abre o vazio.

Espera, não vamos partir já, ainda há coisas por dizer, duas ou três memórias para embalar nas caixas de cartão que trouxemos dos meus pais e uma mão cheia de fotografias que encontramos da última viagem que fizemos. Estamos sempre atrasados nos dias e tudo sabe a rotina imposta, vamos esperar um pouco, parar para poder sentir, vamos sentar aqui, respirar fundo olhar e ver que não é partir, mas sim voltar, que não seja preciso a ausência para viver emoções e que a vida não nos torne invisíveis.
Tudo que se dá ao tempo ganha paladar, macera, os amores, os amantes, os sonhos, os projectos, como o rosto do meu avô tem lá cada sorriso e uma vida cabe numa caixa de retratos.

Tudo surge num compasso marcado, sistemático, vibrante, tu vais e vens, o movimento e a pausa, o teu corpo, a tua falta. Como os bandos, o meu corpo voa em círculos dispersos numa cama onde não encontra o teu, todos os cigarros são de espera surda, todas as estradas percorridas com o mesmo filme mudo. Partes e sem tom fica a casa, mas encontro o teu som em sonhos que vais povoando constantemente, assim as noites, as horas podem existir sem me pesarem. Os dias, esses tenho-os incompletos na escala do nosso ritmo, não estás e quebra-se assim toda a sequência.

A tarde cai em tons de azul disforme, pelo calor que sobressai por entre tudo que a ele está exposto. À minha volta um grupo de cadeiras, amenamente priva, no que entre si há de comum, a usa condição de suportar o variável peso dos corpos.
Um pouco mais à frente, um alguém desfolha o seu aglomerado cinzento de retratos do mundo que o alberga, eu manobro a chávena do café eficazmente até à minha boca, bebo.
Observo, transponho não simplesmente o que vejo, mas o que absorvo, o que sinto para uma folha, tamanho A3 papel xpto, caneta fina, traço a traço… tudo na tua ausência

031aromas

Há aromas que sempre nos acompanham, aqueles que fazem parte dos hábitos, dos vícios, dos pecados e das memórias. Numa imagem é impossível captar um aroma, mas conseguimos adivinha-lo, ir buscar ao fundo da mente e sabê-lo, como eu sei o teu sem sequer ter que me lembrar.

P002tu

Aqui sentada, fecho os olhos e inspiro. A minha pele arrepia-se e consigo lembrar todo um aroma, todo um toque. Mesmo quando não estás, a casa tem o teu cheiro, os papéis espalhados na ordem do teu caos, a almofada tem o molde do teu rosto e a toalha abandonada o teu corpo. Ter-te por perto é aquilo que muitos podem chamar habitual, mas sem cair em hábito oco dos dias, mas antes descobrir-te sempre, nos gestos, na expressão e impressão, no sorriso preso numa mensagem, na gargalhada solta num gesto. Confesso que a velocidade dos dias que tento abrandar, nos induz ao descompasso, tocando em tons diferentes, mas o calor do teu abraço traz-me de volta e podemos ter o silêncio, que nos devolve todos os beijos. Por isso, gosto de te ter nas minhas fotografias, na memória de um desenho que rabisquei entre um cigarro e um café, nas ideias e sonhos que vamos partilhando. Há tanto ainda para fazer, muitas coisas quero apenas sussurrar-te, mas a verdade é que tudo isto que sinto é porque TU existes.

P001branco

Com a janela do carro aberta, o ar entra quente e acaricia-me os cabelos, tu calmamente concentrado no lugar de piloto de uma viagem que sabes de olhos fechados, levas-me para a sua horizontalidade de perder de vista, onde o céu parece maior e a vida ganha outro ritmo. Pela mesma janela, vejo as suas cores torradas, os castanhos, os amarelos, os tímidos verdes, em pleno Agosto e o seu branco. Branco nas árvores, branco das igrejas, das casas e do chão, branco que ilumina e que ofusca. Há o cândido lençol na janela, a brancura da gente e o teu claro sorriso. O branco que aqui todo ele é luz, que protege e que torna único, todo este Alentejo. Porque há pormenores, este não podia passar claramente em branco.

029manjar

Palavra que deriva do francês manger, manjar dos anjos, dos deuses, real, imperial ou principal, é que faz quando se está entre amigos ou familiares, a festividade de estar à mesa, não é simplesmente comer é o prazer que tudo isso dá.